Nos passados dias 13, 14 e 15 de dezembro de 2024, ocorreu em Almada o XXII Congresso do Partido Comunista Português. Longe de ser um momento de construção coletiva da linha do partido, chega a uma altura onde é mais do que necessário uma crítica ao mesmo.
Mas não é suficiente criticar ou analisar as suas teses e resolução política, até porque estas já vêm sendo criticadas ao longo dos anos e em nada se distinguem das anteriores. O importante é avaliar a sua estrutura, criticar de um ponto de vista comunista e saber levantar o que se deveria contrapor como um verdadeiro congresso, com base nos princípios de Marx, Engels e Lenine.
É exatamente isso que nos propomos a fazer com este artigo, não obstante de um momento ou outro de análise à sua resolução política como ponto de ligação com as questões estruturantes.
Um congresso
Consideramos importante analisar, de modo geral, a prática do Partido Bolchevique, não só porque foram os bolcheviques a alavancar o processo revolucionário de maior importância de análise, como também pelo PCP se dizer um partido “leninista”, pelo menos na teoria, que se inspira na revolução de Outubro de 1917. Sendo assim, olharemos a partir do II Congresso do POSDR.
Mas antes disso, e observando uma participação direta de Karl Marx sobre este assunto, anotamos que a 1ª Internacional previa nos seus estatutos a realização de um congresso anual, para nomear o seu Conselho Geral e para proclamar "as aspirações comuns da classe operária"¹.
Quanto aos bolcheviques, eles definiam o congresso como o órgão supremo do Partido, sendo o mais alto nível de decisão dentro da organização. O congresso tem a autoridade final sobre os assuntos do partido e é responsável por eleger o comité executivo, que é o órgão responsável pela execução do trabalho corrente da organização local.
O Congresso Ordinário ocorria anualmente, da mesma forma que se previa na 1ª Internacional, enquanto que o Congresso Extraordinário podia ser convocado pelo Comité Central (CC) por iniciativa própria ou a pedido de não menos de um terço dos membros do partido presentes no congresso anterior. Este congresso extraordinário devia ser convocado com no mínimo dois meses de antecedência, e o congresso era considerado válido se estivesse presente pelo menos metade dos membros que estavam no congresso anterior.
Estes congressos eram utilizados não para reafirmar a linha do partido, mas para a rever e emendar junto da militância. Muitas discussões sobre diversos temas, sobre questões centrais e fraturantes para a vida e a linha principal do Partido, eram discutidas, principalmente, em diferentes Órgãos de propaganda, a maioria deles centrais ao Partido, outros estrangeiros, ou até mesmo, falando do caso do “Diskussiónni Lístok”, numa folha criada especificamente para discussões congressuais. Para além, obviamente, de diversas obras redigidas para combater determinadas linhas políticas e desvios marxistas. Este aspeto de discussão aberta torna um fator determinante para que possam estar presentes no Congresso temas previamente debatidos, que levam já um processo rico onde diversas ideias combatem umas com as outras, onde nesse Congresso têm a sua afirmação final, e os delegados, representando todo o Partido, escolhem qual a linha a seguir.
O congresso é o lugar onde o Partido se reorganiza, reavalia a sua estratégia e define o futuro. O congresso não é apenas um órgão de debate, mas sim um ponto de orientação para todas as organizações do Partido.
Congresso para o PCP
O congresso do PCP, segundo os estatutos, converge em alguma parte com a definição bolchevique, considerando a questão de ser o órgão supremo do partido e ser o lugar onde se define a linha futura do mesmo, divergindo desta definição em alguns pontos.
Quanto à importância, o PCP prevê a realização de um Congresso apenas de 4 em 4 anos. De modo geral, esse espaçamento de tempo (sensivelmente de 4 em 4 anos) aparece no Partido Bolchevique depois da morte de Lénin. Até aí, o Congresso era anual, sempre que possível. Certo que são realidades completamente diferentes, o movimento revolucionário pré Revolução de Outubro tinha necessidades enormes, necessidades essas que são muito pertinentes também no durante e no após Revolução.
Não olharemos para a situação do PCP na época da ditadura, os Congressos eram raros, difíceis de se organizarem. Focar-nos-emos no pós revolução de Abril, porque dá para ver de forma clara que o PCP não dá importância ao Congresso. No Processo Revolucionário que nasce a 25 de Abril de 1974, o Partido realiza um Congresso Extraordinário que dura apenas um dia. Depois desse, começa um período estável, com o Congresso seguinte a ser marcado 2 anos depois, começando aí o período de 4 em 4 anos. Pelo meio, existem dois Congressos Extraordinários, um para analisar a conjuntura do bloco socialista, em 1990, e o outro, preparado em apenas 5 dias para definir a posição do Partido face à 2ª volta de umas eleições presidenciais.
É um olhar geral, mas que nos dá uma percepção clara das prioridades do Partido.
Outro ponto que diverge dos bolcheviques é que os congressos extraordinários apenas podem ser convocados pelo próprio CC, sem qualquer possibilidade de que os delegados do último Congresso possam convocar um caso haja necessidade para tal.
A preparação
A partir daqui entram testemunhos diretos de membros do EDR, que participaram nas várias fases do desenvolvimento do Congresso. Nos congressos ordinários, as linhas gerais das teses são definidas na fase preparatória, da qual pouco ou nada tem de intervenção por parte da militância ou debate possível. Nesta fase, nas sessões onde militantes do EDR participaram, nada de fértil surgiu e nenhuma discussão teve algum resultado frutífero.
Esta fase preparatória ocorreu em maio, no caso do XXII Congresso, em uns poucos plenários à volta do país, onde em nenhum momento se discutiu a elaboração das teses, nem sequer em reunião. Todas as intervenções foram acerca de eventos sem relevância para o congresso. Não houve sequer menção de que seria, efetivamente, uma altura de preparação para o congresso.
O Partido afirma que nesta fase há uma construção coletiva das teses, do rumo e dos objetivos do Congresso, ao que fica a questão: existiu mesmo esta construção e envolveu os militantes do Partido, ou foi apenas obra de umas poucas cabeças pertencentes ao CC?
As teses
As teses são um elemento central na elaboração do Congresso. São apresentadas pelo CC e discutidas pela militância, em diversos plenários e reuniões. Sobre elas, os Estatutos não atribuem uma palavra. Ou seja, são uma parte arbitrária do Congresso, que têm um papel muito importante e estão, simultaneamente, nas mãos do CC, que decide por vontade própria se estas existem ou não.
As teses, tal como qualquer documento acerca do congresso, foram elaboradas e apresentadas pelo CC, sem qualquer intervenção das bases do partido nem abertura para uma crítica mais profunda, respondendo à questão colocada no ponto anterior. Como testemunhado por membros do EDR, membros do CC afirmaram, em plenário, que de facto está mencionado nos Estatutos que o CC redige as teses, numa calorosa discussão com um militante.
No decorrer da preparação do Congresso, as teses são sujeitas a debate e alterações. Estas alterações são feitas da seguinte forma: existe um papel, de tamanho A5, onde o militante se identifica, com nome e organização onde milita, e pode explicitar uma linha específica das teses e apresentar uma proposta, que é depois entregue a algum responsável (é incentivado que se entreguem as propostas de alteração em plenário) e o seu destino é desconhecido. Alguém há de aprovar e descartar as propostas de alteração às teses, e faz-se a pergunta de qual é o percurso de uma proposta de alteração. Para onde vai e quem aprova ou descarta? Face a esta pergunta, realizada em plenário e testemunhada por membros do EDR, a mesa central, composta por membros do CC, não respondeu e ignorou completamente o assunto. Logo, este mecanismo não passa de uma farsa para passar a mensagem aos militantes que eles participam no desenvolvimento do Congresso. Serve também para delegar a discussão para a contribuição individual. Com este método, se alguém tem uma proposta, não é necessária discussão ou consenso à volta de uma determinada ideia, mas basta apenas escrevê-la e fornecê-la a organismos superiores. De facto, essa tática funciona. Mesmo depois do método ser questionado, ninguém se inquietou, e muitos membros do PCP continuaram a usar essa folha para fornecer as suas contribuições, sem qualquer tipo de problema.
Agrava-se ainda mais este problema quando se comparam as teses com as passadas resoluções políticas. O que de facto acontece é que, desde meados dos anos 80, os conteúdos não se alteram de forma significante. Existem pontos das teses que realmente se mantiveram iguais ao longo dos anos, sendo apenas atualizadas consoante o clima político do momento.
Assim, as teses permanecem estagnadas e idênticas aos Estatutos, à ideologia e às resoluções dos congressos anteriores, herdando inconsistências, pobreza teórica, erros teóricos e conceptuais em secções essenciais, que nunca tornam a ser revistos e postos em causa.
Plenários
Os plenários são sessões regionais, abertas a todos os militantes do Partido, onde, teoricamente, se debatem as teses. Podem ter um assunto relacionado, por exemplo, um plenário de Congresso sobre assuntos internacionais.
Os plenários decorreram nuns escassos 4 meses, desde a aprovação inicial das teses (em setembro) até ao congresso em si. Estes são compostos por uma mesa central, quase sempre com a presença de um membro do CC. Notamos que as sessões tinham, geralmente, duração de cerca de 2 horas e realizavam-se ao final da tarde ou de noite. Foram raras as vezes onde não existiam atrasos de meia hora.
A mesa começa o plenário com uma intervenção inicial, onde são “ditadas as regras” e onde o membro do CC fornece um contexto geral das teses. Essas regras são simples, qualquer militante pode intervir no plenário, com um tempo máximo de 5 minutos. É até algo de caricato que depois dessa orientação ser dada, o membro do CC procede a falar, tendo essas intervenções durações de cerca de 30 minutos. Este procedimento foi testemunhado em muitos plenários. Essa intervenção inicial e duradoura tem como conteúdo as teses em si. É feito um resumo das mesmas. É como se a militância tivesse que ir para um plenário de discussão das teses desconhecendo essas próprias teses! Para além do plenário pressupor isso, ainda alimenta a ideia, fazendo com que, de facto, muitos militantes estejam presentes no plenário sem ter lido uma única página das teses.
Quanto às intervenções da militância, toda a discussão se centra à volta de acontecimentos da vida do partido e testemunhos “da luta”. Em nenhum momento existe algum tipo de debate nem alguma troca de ideias sobre ou a linha ou outro qualquer fator estruturante do Partido. Na esmagadora maioria das vezes, são apenas feitas reafirmações do que é a atual linha política. Além disto, a pobreza teórica da maioria dos militantes impossibilita uma discussão aprofundada das teses propostas. Apenas de notar que esta falta de capacidade teórica não é culpa da militância, esta é, na maioria, trabalhadora e pouco tempo tem para se aprofundar sobre os temas complexos do marxismo. É uma tarefa coletiva, que já observada não só pelo EDR como também nas diversas denúncias recebidas, onde a organização do PCP tem uma iniciativa extremamente insuficiente na formação dos seus militantes.
Os poucos militantes que questionaram a linha do PCP ou propuseram alguma mudança estrutural tiveram respostas totalmente desconectadas das questões que eram levantadas. Mencionamos de novo o momento referido anteriormente, onde membros do CC levantaram pontos dos estatutos que não existiam, no momento onde se levantaram críticas à elaboração das teses. Discursos repletos de mentiras e espantalhos, de forma a repercutir na militância de que a discussão tem que ser feita dentro dos moldes que são pedidos, quase formatadas a um tipo de intervenção inerentemente infértil e apenas de questões e dúvidas acerca dos documentos já elaborados sobre o assunto.
No encerramento dos plenários, a mesa central tem de novo a palavra. Neste momento, agem como “seres superiores”, respondendo a todos os temas (ou apenas os que convêm) abordados ao longo do plenário (este momento também ocorre como forma de “intervalo”, a meio da sessão). Agem dessa forma porque sentem que têm uma resposta para tudo, reafirmam afirmações, reforçam pontos e, nas questões que menos interessam ao CC, e como foi mencionado acima, respondem com desvios, introduzem mentiras e espantalhos, passam a imagem aos presentes de que de facto há uma resposta às críticas e que o Partido é que está bem. Nestas intervenções, mais tempo é completamente perdido, e desta forma, de modo geral, a mesa central ocuparia cerca de 1 hora em todos os plenários de Congresso, relembrando que cada militante poderia falar apenas durante 5 minutos e as sessões tinham duração de 2 horas.
Todos os momentos de discussão e debate são extremamente insuficientes face às necessidades que se impõem. Desde as escassas reuniões locais até à falta de debate aberto, a conclusão é de que as bases têm uma participação praticamente nula nas decisões fulcrais do partido.
As teses do Congresso limitam-se a ser um texto quase terminado, que apenas requer uma edição de texto final e um abanar de cabeças em sinal de aprovação por parte dos militantes. Nada de essencial é adicionado e pouco muda entre a versão inicial e a final. Aliás, em relação aos pontos das teses, apenas um foi adicionado na Resolução Política final, o ponto 6.3, que constitui apenas dois parágrafos. Todos os outros se mantiveram iguais.
Eleição de delegados
A eleição de delegados ao Congresso acontece, geralmente, numa reunião de organização onde são votadas as teses e a proposta de delegados ao Congresso. Esta proposta é elaborada pelos membros responsáveis da organização e apresentada no final da reunião.
Acontece que esta lista proposta é composta, já por si só, por membros de “alto escalão partidário”. Talvez aqueles a que muitos chamariam de “controleiros”. A verdade é que se alguém mostra contestar a linha do Partido, é praticamente certo que não irá estar nessa lista. Esta é então a base de como o PCP consegue manter a sua hegemonia ideológica e sem contestação. Se já é normal haver militantes que levam a peito críticas ao Partido, então não haveria nada mais pessoal do que questionar a lista de delegados. O EDR não encontrou nenhum caso onde foram, pela militância, propostos delegados ou questionados os presentes na lista.
Congresso ou comício?
Apesar do grande número de discursos neste congresso, que contou com 3 dias repletos de extensas intervenções, parece que faltou uma dimensão crucial que torna um congresso realmente fértil e renovador de um partido: a autocrítica, não só relativamente às formas de atuação do partido, mas também à ideologia e à linha teórica.
Numa tentativa condescendente de substituir esta autocrítica, o Partido, especialmente desde a invasão Russa da Ucrânia, até aos dias do passado congresso, emprega o seu cliché de eleição: que o fracasso do partido não se situa nele mesmo, mas deve-se sim à “ofensiva ideológica”.
Por sua vez, esta ofensiva ideológica encontra-se convenientemente em crescimento constante, como se tivesse havido uma época mediática dourada em que tal ofensiva era mais branda. O secretário-geral Paulo Raimundo não hesita em fazer referência à mesma logo poucos minutos após iniciar o discurso de abertura do XXII Congresso:
“É um facto que ofensiva ideológica sempre houve, a grande diferença nos dias de hoje é a sua dimensão, meios e instrumentos ao seu serviço.”²
Algo óbvio se retira desta deslocação de responsabilidade e de locus causal: de que o partido considera que detém a linha política, a estratégia e as aspirações do proletariado de forma inegavelmente correta, mas que, infelizmente, os meios de comunicação e de difusão ideológica enganam e desviam as massas do caminho iluminado proposto pelo partido.
O que resta sob este solo infértil, a partir de onde a crítica já pouco crescia e muito menos cresce agora, são os galhos secos do que outrora existia, a mesma linha, as mesmas conclusões e os mesmos trabalhos a serem definidos, ou seja, temos perante nós um comício, onde uma linha é meramente reforçada, apenas com alterações superficiais, e não um congresso, de onde floresce o debate, e de onde algo novo e de vanguarda pode nascer. A crítica nunca é fomentada, quem a faz recebe em troca o afastamento, não existem mecanismos de discussão, de desenvolvimento teórico nos órgãos centrais do Partido, o Avante! e o Militante. A formação ideológica dos militantes é colocada de lado. Só se pode afirmar que o Congresso é uma festa para o Partido, não tem nenhum significado que se assemelhe ao que outrora teve, membros reúnem-se, afirmam o mesmo de sempre e aprovam a linha que está a deixar o PCP num curso irreversível de irrelevância.
Referências
1 Estatutos da I Internacional, 1864
2 Paulo Raimundo, Discurso de Abertura ao XXII Congresso