O sol ergue-se laranja em vários países da Europa e no mundo nestas últimas semanas. O fumo dos incêndios que varrem as florestas da Europa, facilitados por ondas de calor cada vez mais frequentes e severas, ocultam o céu outrora azul e tingem o ar com um cheiro característico. Cheira a madeira queimada e cinzas. Portugal nunca foi estranho a este fenómeno, mas parece existir algum entrave à prevenção adequada de incêndios, que ocorrem cada vez com menos frequência, mas tornam-se mais devastadores.
Coincidindo com a sua ocorrência, inflama-se também no panorama político português a discussão sobre os incêndios durante o verão. No discurso dos partidos de direita, conhecem-se as posições e a notória falta de ação ou até de preocupação proporcional a um fenómeno que não só ameaça intensificar-se, mas também mudar completamente o panorama florestal português, pondo a geografia e o clima marchando rumo à desertificação total.
O foco deste artigo não será acerca do espectro político à direita, mas direciona-se sim aos partidos de esquerda nacionais que normalmente posicionam-se como os defensores legítimos do clima e do ambiente, em particular o Partido Comunista Português, o Bloco de Esquerda, e o Livre.
A raiz do fogo: quem lucra com a tragédia
Para além de esclarecer o quão rebaixada e limitada se mostra a atuação da esquerda institucional ao se pronunciar sobre a tragédia dos incêndios em Portugal, este artigo visa também esclarecer as causas económicas e ambientais dos incêndios, que não surgem do vácuo, e evidenciar quem lucra com essa tragédia que aparenta prejudicar ao “povo”, mas precisamos discernir quem desse “povo” sofre realmente com tudo isto (classe trabalhadora) e quem do dito “povo” não aparece nos telejornais, mas a cada pinhal a menos, sempre ganha algo, a burguesia do eucaliptal e da mineração.
Não se inventaram os incêndios este ano, nem em Portugal, nem em qualquer canto do mundo, por que surge este debate então? Porque ano após ano a quantidade e intensidade de desastres naturais como incêndios tem aumentado em Portugal e no mundo. Quando tocamos neste tópico estamos na raiz primária do problema: as mudanças climáticas e o aquecimento global causados pelo capitalismo global.
É insustentável um sistema político-económico que aspira ao lucro infinito num planeta de recursos finitos, o capitalismo está nos guiando à nossa extinção como espécie, e a culpa é maioritariamente deste modo de produção onde pouco importa o bom trato do ecossistema ou a qualidade de vida de todas as espécies, o que interessa é lucro e lucro.
Estando todos nós sujeitos a aumentos sucessivos da temperatura média global, fruto das massivas emissões de dióxido de carbono à biosfera pela queima de combustíveis fósseis em todo mundo, ficamos sujeitos também a mudanças climáticas de todos os géneros, seja de invernos mais chuvosos, imprevisíveis e tempestuosos, seja de verões mais secos e escaldantes.
Se um terreno seco e temperaturas de mais de 40 graus por dias seguidos constituem um cenário de horror para a classe trabalhadora, para a burguesia dos eucaliptos e da mineração é um paraíso.
Segundo que argumenta o biólogo Francisco Moreira, do instituto superior de agronomia, a floresta nativa em Portugal já foi maioritariamente povoada por carvalhos, e que esse paradigma foi alterado pela direção para a qual caminharam os governos do capital que decidiram que a floresta não basta ser natureza, lar e ecossistema, esta tem de ser também útil, orientada exclusivamente para a produção de mercadoria. Diz ele: “Do ponto de vista da biodiversidade, diria que maioritariamente [a gestão florestal] não foi minimamente orientada para esse objetivo. Historicamente, o objetivo principal foi a produção de madeira e produtos lenhosos, que é talvez o que tenha estado na origem do facto de grande parte da floresta portuguesa hoje ser pinheiro e eucalipto.”¹
Esta transformação forçada do ecossistema nacional evidencia como muitas aldeias de Portugal enfrentam incêndios e veem o fogo a espalhar-se todos os verões, pois o eucalipto é muito menos resistente aos fogos em comparação aos carvalhos ou aos pinheiros-do-norte. Essa predominância do eucalipto não é aleatória, ela serve aos interesses económicos do grande capital ligado à produção de pasta de papel a partir da celulose dos eucaliptos, sendo as duas principais empresas deste ramo a The Navigator Company e a Altri. Se para a classe trabalhadora a ideia de substituir a floresta nativa centenária por eucalipto atrás de eucalipto pode parecer burrice, para essas empresas, não só é inteligente, como rende rios de dinheiro, aos seus executivos e acionistas.
O que permite esse domínio de poucas empresas sobre grande parte da floresta do país? Simplesmente a estrutura da propriedade, e como está distribuída a terra. Sendo 97% da floresta nacional propriedade privada, não está propriamente nos principais interesses da burguesia do extrativismo florestal, ou dos partidos políticos do estado burguês a biodiversidade e a preservação da floresta.
Após cada incêndio, a tragédia não se limita às vidas perdidas ou à destruição do meio ambiente. Os terrenos ardidos rapidamente desvalorizam-se, tornando-se alvos fáceis para a especulação. Muitos pequenos proprietários, sem dinheiro, meios ou apoio do estado para reflorestar o terreno destruído, acabam por vender as suas pequenas terras a preços irrisórios. Quem beneficia de imediato é o grande capital da celulose, fundos de investimento e até interesses ligados ao turismo e a mineração: compram barato, concentram terra e convertem-na em monoculturas de eucalipto ou outros projetos em busca de, e apenas de, lucro. O fogo, que para a classe trabalhadora significa ruína, para a burguesia funciona como um mecanismo de limpeza e de concentração de propriedade com desconto.
Estudos académicos atestam este movimento. Uma investigação publicada em 2024 na revista Land (MDPI) refere:
Propriedades abandonadas são adquiridas a preços baixos para plantar eucaliptos como investimento... Após a primeira colheita aos sete anos, os custos iniciais de compra e plantação são recuperados, enquanto as colheitas subsequentes aos catorze e vinte e um anos geram lucros substanciais com um investimento adicional mínimo.²
Os grandes incêndios de 2017 em Pedrógão Grande, que destruíram o pinhal quase milenar de D. Afonso III e D. Dinis, poderiam ter sido um ponto de viragem para uma política florestal ao serviço do povo e da biodiversidade. Em vez disso, o Estado manteve-se refém dos interesses do eucalipto e do grande capital. O que para muitos foi uma tragédia histórica, para a burguesia foi apenas mais uma oportunidade de negócio.
A postura da esquerda institucional
É fundamental analisar o que dizem os partidos da esquerda institucional, como o PCP, BE e o Livre, face ao flagelo dos incêndios, e entender como a sua postura tem que ser considerada como um problema, não só devido às suas enormes limitações práticas, nomeadamente a (muito difícil) aceitação das suas propostas, como na falta de mobilização das massas trabalhadoras, como força fundamental contra o grande capital. Em linha com o que costumam ser as suas típicas posições, estes partidos limitam-se a críticas quase exclusivamente morais e institucionais.
O Partido “Comunista” Português começa a sua declaração³ sobre os incêndios a apontar a “arrogância e desvalorização” que o Governo tem sobre as populações afetadas. De seguida, critica algumas medidas tomadas ou não pelo Governo, acompanhada com um pacote de contra-medidas meramente institucionais. A denúncia geral dos “grupos económicos que controlam o setor do papel e da cortiça” aparece apenas de uma forma breve, dizendo que estes determinam o preço da madeira. Não mencionam diretamente os eucaliptos, mas são explicitamente contra a extensão de monoculturas florestais.
Como também não poderia faltar, a menção clássica da “submissão aos interesses dos grupos económicos” e a fácil solução de que esta “tem que acabar”.
Por fim, distinguem a sua ação de se empenhar “na resposta a um problema estrutural” ao “forçar” o Governo a se apresentar na Assembleia da República.
A posição do Bloco de Esquerda pouco se distingue. Mencionam na mesma as “falhas” do Governo na reação aos incêndios, como atrasos, preparação de meios e acionamento de mecanismos internacionais de apoio. Mencionam diretamente a substituição do eucalipto por espécies autóctones num plano de ordenamento da floresta em Portugal. À semelhança do PCP, também acionam um mecanismo institucional como ação de resposta a este problema, mas desta vez através de uma Comissão de Inquérito para “apurar a disponibilidade, contratação e manutenção dos meios de combate, investigando a responsabilidade governativa na indisponibilidade de helicópteros e aviões Canadair”.⁴
Por fim, o Livre, por meio de dois comunicados regionais⁵ ⁶, em quase nada se diferencia dos dois outros partidos. Também acionam os seus moralismos, do “esquecimento e desprezo do interior”, fazem as suas críticas à gestão do Governo e defendem a prevenção futura através da aposta em árvores autóctones.
Traça-se um quadro muito claro: moralização, críticas à inércia do Governo, propostas legislativas e convocações institucionais na esperança de obter alguma atenção para fins eleitorais. Nenhum dos partidos se propõe a colocar no centro das suas análises a luta de classes e os interesses burgueses expostos no início deste artigo. O único que se propõe em fazê-lo, em teoria, é o PCP. Mas com o tema dos incêndios torna-se ainda mais claro o seu abandono total de qualquer pauta revolucionária e o seu funcionamento totalmente agarrado às instituições do Estado burguês. Ao contrário do que se possa pensar, não são os partidos como o PS, PAN, Livre e BE que se aproximam mais às posições do PCP, mas sim o oposto. A tendência normal de todos os partidos é a de caminharem para a direita. Nunca tendo o PCP combatido esta tendência, torna-se agora quase indistinguível dos restantes partidos. O conjunto da esquerda institucional não passa de algo inofensivo e que à classe trabalhadora não dá esperança nenhuma, muito menos algo que apresente uma análise adequada da situação e a consequente agitação para a luta de classes.
Enquanto não existir uma verdadeira consciencialização de classe, a burguesia irá prosseguir sem freios à concretização dos seus interesses, mesmo que com isso seja acompanhado um rasto de desastres ambientais que colocam a vida de milhares de trabalhadores em risco. As classes dominantes não se importam com as ofensas moralistas que lhe são feitas, as audiências parlamentares ou extensos inquéritos. Terão sempre as suas manobras manipuladoras como resposta, e a verdade é que têm funcionado nos últimos anos. A grande acumulação de capital das empresas extratoras de madeira continua, e só a luta pela mão da classe trabalhadora será capaz de terminar esta chacina ambiental.
A cada dia que passa fica mais claro que o apego à institucionalidade é um fator determinante na grande desmobilização que se encontra visível, ainda por cima no que toca ao tema dos incêndios. Sobre os incêndios, apenas a rede “Emergência Florestal/Floresta do Futuro”, com a subscrição de diversas organizações, marcou mobilizações populares. Esses protestos, marcados para dia 20 de setembro em todo o país, já têm como ponto central a denúncia das empresas da celulose e o “deseucaliptamento” das florestas. Infelizmente, o poder de mobilização destas organizações independentes da esfera de influência do PCP e do BE não é muito grande, pelo menos quando comparado com o poder de mobilização destas organizações institucionalizadas. Estas, através duma convocação encabeçada pela CGTP, preferiram mobilizar as massas contra uma medida institucional, no caso o Pacote Laboral, com uma manifestação marcada para o mesmo dia, 20 de Setembro. É escusada a desculpa da decisão por antecedência, já que os primeiros protestos contra os fogos já estavam anunciados pelo menos desde dia 19 de Agosto, enquanto que o protesto da CGTP foi anunciado no início de Setembro. Fazemos o apelo à presença nos protestos contra os incêndios, já que os responsáveis por estes não podem passar impunes como têm ao longo dos anos.
Terminamos com a solicitação do costume, pela reorganização do movimento comunista, que só quando completamente articulado é que será capaz de prosseguir rumo às lutas mais importantes e fundamentais da atualidade para a classe trabalhadora, rumo também à reconstrução do Partido Comunista, única organização que será capaz de alcançar a derradeira vitória final, a ditadura do proletariado e o comunismo!
Referências
1 O eucaliptal português: um diagnóstico de má gestão e abandono
3 Nota do Gabinete de Imprensa do PCP
4 “Todas as lições foram esquecidas”: Bloco anuncia comissão de inquérito ao combate aos incêndios